quinta-feira, 4 de setembro de 2014

Carl Orff - Carmina Burana

Coliseu do Porto - 19. Julho. 2014

Humana noite.
Um concerto onde a cultura latina e a mística da Natureza foram partilhadas através da música.
Existem obras que se caracterizam por fazerem parte da memória colectiva das nações desenvolvidas; são casos em que automaticamente nos lembramos dos nomes das obras e até assobiamos a melodia que fica no ouvido, como por exemplo a Carmen de Bizet, o Bolero de Ravel, a Para Elisa de Beethoven. Inconscientemente, o nosso espírito crítico desvincula-se muitas vezes dessas obras, pois estamos constantemente a ouvi-las nos filmes, na publicidade, nos toques de telemóvel. Segundo Alex Ross em O resto é Ruído, "A ideia da «música para consumo» ganhou raízes rapidamente na cena musical de Weimar [república estabelecida na Alemanha entre 1919 e 1933]. Carl Orff (...) cultivou-a assiduamente." Havia também a necessidade de criar obras com música educativa, aquilo que Peter Gay designou de Fome de completude de Weimar, isto é, "a sua busca obsessiva de projectos de artes e ofícios, de cultura física, de expedições de retorno à natureza, de movimentos juvenis, etc."

Voltando a Alex Ross, este realça que Carl Orff "obteve um êxito surpreendente na Alemanha nazi com a sua cantata Carmina Burana. Com a sua exótica escrita para percussão (modelada sobre Les Noces de Stravinsky) e os seus "ressaltos" sonoros sincopados, esta obra (...) estava muito longe das óperas de Wagner favoritas de Hitler." Nos seus primórdios, Orff tendia para a esquerda política, compondo para poemas de Bertold Brecht, o que avoluma este paradoxal êxito.

Uma luta contra o tempo através do piano, o colidir de mundos distantes com os pratos e um canto coral homofónico, assim se revela a fome de completude com que principia a trilogia musical Trionfi que inclui as cantatas Catulli Carmina e Trionfo di Afrodite. Todas começam na mesma nota e com uma presença rítmica repetitiva que incute ao ouvinte a vontade de pegar nas suas armas, sejam da arte e do pensamento, da terra e da força, e procurar a salvação da Humanidade e da nossa própria alma.

Numa sala onde os elementos mais distantes de cada coro disseram ter tido alguma dificuldade nos ensaios em percepcionar com máxima clareza a sua própria massa sonora, devido à forma e dimensão do palco, o êxito de Weimar voltou a repetir-se, mesmo que com poucos dias de ensaios e com instrumentistas diferentes daqueles que se apresentaram em Barcelona dias antes. A junção entre o Cor Jove de L'Orfe'o Català e o Ensemble Vocal Pro Musica foi impecável. Os parabéns a José Manuel Pinheiro pela dimensão, qualidade e extremo cuidado na escolha dos elementos e na clareza de articulação. O Coro Júnior do Curso de Música Silva Monteiro, ao cantar dos lugares do balcão, o chamado "galinheiro", revelou-se como a cereja no topo do bolo; limpidez e frescura, num momento peculiar, onde o maestro se volta para o público para dirigir o coro.

Não tão perfeita foi a junção entre os dois pianistas, o português João Queirós e o catalão Josef Burfon. À personalidade do primeiro, mais rigorosa na leitura do texto musical, disciplinada na junção com o resto da orquestra, opôs-se (é este o termo) a personalidade extremamente fogosa e endiabrada do catalão, que muitas vezes demonstrou pouca atenção à manutenção e qualidade do som, mesmo com uma ténica que em nada fica a dever à do primeiro.

Quanto aos solistas, a soprano Ana Maria Pinto foi a que mais se destacou pela positiva. Tanto nos sons de duração infinita como nos intervalos mais distantes, manteve sempre a música palpável, fluida, como se já estivesse a acontecer há muito tempo e a sua voz fosse "só" o meio por onde ela se junta à nossa mente. A entrada do tenor João Terleira foi sublime, exacta, onde sem preparação é muito arriscado cantar afinado. José Corvelo apresentou-se ao seu nível, flexível para com a orquestra. O conjunto instrumentista desta, além dos pianos, é composto de percussão, onde há a realçar a presença de Carlos Puga Garcia e Jorge Lima, que se revelaram exímios na criação tímbrica e rítmica que o maestro Esteve Nabona incutiu com alterações subtis de andamento e dinâmica ao longo de todo o concerto, potenciando as qualidades desta obra.

Foi com grande satisfação que o público saiu do Coliseu para as ruas quentes do Porto após ouvir as "Canções de Beuern" - a cantata cénica Carmina Burana.